Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor.
“Art. 1º - É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos
que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
(Resolução CFM 1805/2006)
“Rápido! Adrenalina 1mg: fazer EV, agora! Continue a massagem cardíaca! 28, 29 e 30! Duas ventilações, agora! Pessoal, já chegou o desfibrilador?! Vamos lá! Todo mundo se afastando que eu vou chocar! 1, 2 e 3: choque administrado! Voltem as compressões torácicas! Prepare 300mg de Amiodarona!...”.
Acabara de chegar ao hospital, e vi toda a equipe envolvida, tentando fazer uma Reanimação cardiopulmonar (RCP), em um paciente. Perguntei se queriam ajuda. Ninguém respondeu! Todos estavam tão concentrados em exercer da melhor forma possível as suas funções, que acho que nem escutaram a minha oferta... De repente, do nada, apareceu uma criança. Parecia até que era a mesma criança do conto de Hans Christian Andersen: “A roupa nova do rei”.
Logo pensei comigo: “Quem a deixou entrar aqui, logo nesta hora?”. Mas, antes de alguém responder o meu questionamento, a criança rindo, gritou - não que o rei estava nu-, mas sim: “Ei, todos vocês! Não percebem que estão reanimando um cadáver?!”. Aquela óbvia constatação congelou a todos. Vi, na face de cada membro da equipe, instalar um sentimento de vergonha... Havia algo de podre, não no reino da Dinamarca, mas naquela RCP...
Todos ficaram parados! Parecia até que tinham recebido uma carga de desfibrilação de mais de 200 joules... A ficha caiu! E todos, em um silêncio profundo, começaram a recolher o material utilizado nesta RCP inútil... Sem saber o que fazer – e tão desnorteado quanto todos da equipe de reanimação-, corri em direção à criança e perguntei: “Você conhece este paciente?”. “Claro!”, respondeu à criança, “Ele se chamava AMIZADE!”.
O poeta inglês William Blake, no seu poema “Augúrios de inocência”, já tinha nos solicitado a “Ver o mundo num grão de areia/ E um céu numa flor de campo/ Capturar o infinito na palma da mão/ E a eternidade numa hora”... Pois bem! Aquela criança, na sua inocência verdadeira, fazia tudo isso: via o grão de areia, o infinito, a eternidade... Via o óbvio! Enxergou o que ninguém conseguiu ver. A AMIZADE tinha virado um cadáver! Sem nenhuma possibilidade de RCP...
A criança saiu correndo. Foi embora. Muito provavelmente para aprontar mais uma das suas: ver se algum rei estava nu; ver se tinha jiboia dentro do chapéu; ver se estavam reanimando cadáveres por aí... Tentei alcançá-la. Mas foi inútil. Ela era mais rápida do que eu. Cansado e desnorteado, parei! E fiquei pensando: “Por que a AMIZADE tinha morrido?! Quem tinha tido a ousadia de matá-la?!”.
Sim, alguém a matou! Pois a AMIZADE, segundo Mario Quintana, é um amor que nunca morre. Então, se morreu, foi porque alguém a matou... Mas quem?! Quem seria o culpado (ou culpados?), que teria atentado contra o maior de todos os sentimentos, a maior de todas as riquezas?
Não foi à toa que Xenofonte, historiador e filósofo grego, há mais de dois mil anos, nos alertava: “Um bom amigo é o mais precioso de todos os bens. Está sempre pronto a auxiliar”... Vinícius de Morais afirmava que enlouqueceria se morressem todos os seus amigos. Acredito que o pai da “Garota de Ipanema” não só enlouqueceria, mas morreria também, já que a AMIZADE nada mais é do que uma alma em dois corpos, como ensinava Aristóteles. Beethoven, na sua magnífica Nona Sinfonia, bradava a AMIZADE: “Quem já conseguiu o maior tesouro/ De ser amigo de um amigo... Rejubile-se conosco! Mas aquele que falhou nisso que fique chorando sozinho”... Cristo, tão abalado com a morte de Lázaro, chorou... Afinal, “Queremos amigos”, ensinava Sêneca, “Para ter alguém por quem eu possa morrer!”...
A história de Damon e Pítias mostra exatamente o que o verdadeiro amigo - a verdadeira AMIZADE-, é capaz de fazer: “Dionísio, rei de Siracusa, prendeu Pítias e o condenou a morte, acusado-o de está incitando a população contra o seu reinado. Certo de que ia morrer, Pítias pediu ao rei, que o liberasse para se despedir da família. O rei sorriu: ‘Você acha que eu sou otário de liberar você, para fugir?’. Calado até então, Damon disse ao rei: ‘Pode liberá-lo que eu ficarei em lugar de Pítias e se ele não voltar, pode me matar!’... e assim foi feito. Os dias se passaram e nada de Pítias voltar. O rei, então, mandou matar Damon. E este até o último momento acreditava que Pítias voltaria. E ele voltou. O rei ficou tão impressionado com a lealdade, dessa AMIZADE, que revogou a pena e implorou aos amigos que lhe ensinasse a receita de tão sólida AMIZADE”.
Pensando em todas essas frases e história, bateu-me uma sensação de tristeza: a AMIZADE morreu! Mataram-na!
Caminhei lentamente em direção ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), com o intuito de saber a Causa Mortis da AMIZADE. E estava lá no laudo de necropsia e no boletim do atestado de óbito: “Ingratidão; Inveja; Grosseria; Indiferença; Mentira; Desonestidade; DESCONFIANÇA!”.
Pena! Muita pena de quem fez isso! Pois matar a AMIZADE é o mesmo que perder a oportunidade de unir o céu e a Terra. Já que o amigo é uma testemunha do passado, que divide o amor, esperanças, fracassos, suportando o nosso sucesso - sem inveja... e sem tê-lo, a nossa possibilidade de ser feliz é mínima...
Lamento também! Mas acabou.
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