domingo, 8 de dezembro de 2013

ZÉ AREIA, O ÚLTIMO BOÊMIO

José Alexandre Garcia

De repente, me deu uma saudade enorme de Zé Areia. De sua verve, de seu modo bom de ser, de seu conformismo com a vida, da sua boemia sem vintém, sem horizontes.
Mas rico de gestos. Milionário de frases. De piadas que fizeram rir uma cidade.
Desde os tempos da Guerra, tornara-se uma figura lendária, pelos golpes que aplicara nos americanos, na venda de papagaios, macacos, passarinhos, até corujas.
São por demais conhecidas algumas "transações".
A do macaco ferido na cabeça, ferimento que ele disfarçava, pregando dezenas de estampilhas de Educação e Saúde no cocoruto do bicho.
Ao americano que estranhava tanta selagem, esclareceu:
- Sabe Aduana? Muita fiscalização!

PAPAGAIO CEGO
A um my friend que viera reclamar a venda de papagaio cego, perguntou:
- Afinal, você quer papagaio pra falar ou pra assistir cinema?

CORUJA MUDA
Atribuem-lhe até a da coruja, embora acredite que não seja ele.
Quando o americano veio reclamar que o bicho não falava, ele consolou o comprador:
- Não fala, mas presta uma atenção!

A DO BIGODE
E pela vida afora, sucedem-se as piadas, os repentes, as respostas de espírito.
Ao trabalhar como barbeiro, num socavão de escada que dava para pensão de rapariga, um freguês entrou e, querendo fazer graça, aspirou o ar e tapou as narinas:
- Ô catinga danada de buceta!
E o barbeiro, a seriedade em pessoa:
- Quer que raspe o bigode?

A DO CARNEIRO
A do carneiro de Luiz de Barros, uma beleza de carneiro que rifara e que na tarde do sorteio, quando foi entregar o prêmio, Luiz, atarefado, não recebeu, pedindo para voltar na manhã seguinte.
No outro dia, Zé Areia apresentou-se com um bicho pequeno, magro, com ares de quem não comia há três dias.
- Espere - reclamou Luiz - este não é o carneiro de ontem.
- É, seu Luiz. É que ficou no relento a noite toda. Como choveu muito, o coitadinho encolheu.

A DO BURRO
Zé Areia rifava um belo cabresto, com arreios de prata, quando, se não me engano, o alto comerciante José Natal resolveu dar uma de gozador.
- Eu não compro. E justificando-se:
- Não tenho cavalo. Prá que quero cabresto? E Areia, com duplo sentido.
- Serve prá burro também.

A DO BONDE
De bonde superlotado, ao pedir parada:
- Motorneiro, pára aí que vai saltar um corno!
Depois de apeado, os pés firmes no chão, dando troca às risotas:
- Agora, leve o resto!

O AVALISTA
O aval fôra dado pelo deputado Djalma Marinho, seu amigo do peito, a empréstimo contraído em Banco.
Transcorridos os noventa dias regulamentares, Zé não passava nem na calçada do estabelecimento creditício.
Djalma encontra-se com ele e reclama, ressentido:
- Zé, o Banco já me telefonou três vezes!
E Zé Areia, cínico, com fingida indignação:
- Deputado, compenetre-se e pague. Era só o que me faltava! Pra que eu seleciono tanto meus avalistas? É pra não sofrer decepções como esta!

O EMPREGO DE JOÃO CAFÉ
A antológica.
Desempregado no Rio de janeiro, Zé resolve ir ao Catete pleitear uma boca a João Café Filho, seu colega de grupo escolar, então na presidência da República.
Café, morro dizendo, foi um mau presidente para o Brasil, péssimo para o Rio Grande do Norte, e, no poder, foi justamente o contrário do liberal que era nos tempos de deputado oposicionista, do "Lembrai-vos de 37!".
Nem o recebeu. Mandou oficial de gabinete oferecer-lhe lugar de Soldado da Borracha, o engodo governamental da época, para povoar a Amazônia.
Quando Areia soube que a colocação era para recolher o látex das seringueiras, deu altiva e memorável resposta.
- Diga a Café que quem tira leite de pau é boceta.

O VENDEDOR DE BILHETES
Zé Areia baixava na Delícia vezes sem conta por dia. Ora na faina de vender bilhetes de loteria, poules de bicho, ou suas famosas rifas; Ora para tomar um aperitivo para o almoço, se almoço houvesse naquele dia. E, à tardinha, convidado por amigos, guando destilava a sua verve, os repentes, as respostas na exata.
Deixem-me descrevê-lo, em pinceladas sumárias: feio, gordo, atarracado, mal vestido, maus dentes, sempre com barba por fazer, ele, Areia, a isto tudo superava pelo seu espírito. Aí, ninguém via o homem comum, e, sim, a inteligência privilegiada.

A DO CORONEL
Acontecidas na Confeitaria, eu me lembro de algumas.
Uma tarde, em fase melancólica, contava a sua desdita. Fora casado, tivera lar, esposa e filhos, mas a mulher ou não aguentara a sua vida boêmia e as incertezas dos dias sem ter o que comer, qual Amélia, ou nascera com o destino da lua - como naqueles versos de Lupicínio - não ia viver só pra um. Pra resumir a história, ao retornar uma madrugada, não encontra nem mulher, nem filhos, nem móveis, nada.
Zé Areia confessava que ficara como louco:
- Não, por ela. Pelos meninos - esclarecia.
Pergunta daqui, pergunta dali, termina por localizar a nova morada da ex-esposa. Agora tida e mantida por um tal coronel Teodósio, chefe político respeitável e pai de numerosos filhos.
Impando de alegria, Zé Areia larga-se para rever os meninos.
Estava brincando com eles, quando salta dum cavalo o tal coronel Teodósio, rebenque na mão e falando grosso.
- Boa tarde, "seu" Areia!
- Aí, eu... e passa nos peitos uma talagada de cachaça dessas de sargento.
Os companheiros da mesa esperavam calados e respeitosos a narrativa do violento bate-boca ou cena de feroz pugilato.
- Aí eu... prosseguiu Zé, voltando ao seu natural galhofeiro - desengalhei o chapéu da galhada dos chifres e respondi muito educadamente:
- Boa tarde, coronel Teodósio. Deus guarde Vossa Senhoria e suas excelentíssimas famílias!

O NOME DO CAIXEIRO
Areia vendia rifa dum carneiro à porta da Delícia, quando um filho do alfaiate Benvenuto começa a mexer com ele, botando mil e um defeitos no animal.
E Areia calado.
O rapaz, pressupondo que tinha chocado o vendedor, prosseguiu:
- Zé, este carneiro tem jeito de fresco! Como é o nome dele?
E o ex-barbeiro, em cima da bucha, sem levantar a cabeça, passando troco para um comprador.
- Benvenuto.

VIA URINÁRIA
Em tarde ensolarada, o nosso cambista chupava um picolé na calçada da Delícia, quando passa um conhecido e faz ares de reprovação.
- Zé, você chupando em plena via pública!
E Zé, tirando o picolé da boca:
- Melhor do que você, que chupa em via urinária.

A VISÃO DE BELA MULHER
Tomavam cerveja numa mesa, Alexandre, o compositor Dozinho e o cambista, quando entra na Confeitaria uma dona, tipo Marta Rocha, pra lá de boa.
Romântico, Alexandre falou:
- Essa mulher é um poema. Estou com o coração batendo. Dozinho, mais terra-a-terra, sensual e concupiscente, revelou:
- Eu estou é de pau duro.
E Areia traindo sua tendência para a felação:
- E eu estou com a língua trêmula!

O CAPITALISMO AMERICANO
Zé Areia era abecedista fanático. Numa segunda-feira, após ABC x América, em que o América vencera, divulgava-se, à boca pequena, que o zagueiro Toré teria sido "conversado" para facilitar o jogo.
Os americanos, sem dar bola aos comentários, tiravam o couro dos abecedistas, quando Zé Areia emite sua opinião:
- Não foi o América que venceu. Foi o capitalismo Americano...

CHORANDO NO MARACANÃ
E por falar em futebol, Zé Areia estava no Maracanã, para assistir Vasco x Flamengo no meio da patota cruzmaltina, quando o Vasco entra em campo e há aquela festa da torcida: papéis picados, palmas, bombas, gritos de guerra.
Nisso, Areia começa a chorar.
Um patrício sentado ao seu lado incomodou-se:
- Vossa Excelência, está a senteire alguma cousa? Areia sacode a cabeça negativamente. O patrício insiste:
- Mas Vossa Excelência está a choraire!
E o papa-jerimum Zé Areia, sem poder mais controlar-se, aos urros.
- Estou com uma saudade enorme do ABC!

O TRATO DO BILHETE
No fim da vida, depois de construir casa no pé do morro do Hospital das Clínicas, chega com uma novidade: lhe aparecera uma mulher. UMa joia de mulher. Nova, não era. Mas educada, carinhosa, limpa, cuidadosa.
Um mês depois, botam à porta um recém-nascido.
O casal, o coração de um maior do que o do outro, resolve adotar a criança.
Começa, então, para Zé, uma odisseia: a de alimentar o bebê; ganhar o leite do menino, como ele mesmo dizia. Uma batalha diária.
E multiplica-se, na faina de vender bilhetes, poules de bicho, rifas!
A mim, oferecia loteria a três por dois. Alérgico a jogo, nunca comprava. O que desgostava o vendedor.
Até que, devidamente industriado pelo velho Zé Alexandre, chegamos ao seguinte acordo: eu não compraria bilhete, contudo, no dia, que ele estevesse realmente precisando, apareceria no escritório e eu lhe daria o correspondente à comissão que ele teria direito se tivesse vendido o bilhete.
O acordo funcionou às mil maravilhas! Oportuno frisar a honestidade de Areia.
Ele só realmente aparecia quando, até às onze horas, não havia faturado nada.
- Alexandre, hoje preciso lhe vender um bilhete!
Eu tirava da gaveta o correspondente à sua comissão, digamos uns duzentos cruzeiros, e lhe passava às mãos, sem dizer nada.
Dia feliz para o vendedor era quando o velho Zé Alexandre igualmente se interessava.
- Hoje, eu quero um bilhete também, Areia.
Zé, que tinha admiração incontida pelo chefe do escritório, ficava radiante.
Uma tarde, estávamos na Delícia tomando umas, quando entra Areia, assobiando, feliz.
- Já lhe procurei no escritório três vezes. O velho Zé Alexandre me disse que você só poderia estar aqui.
- O que é que há? Perguntei seco, na defensiva, temendo uma "facada".
- É que venho da Casa Lotérica. E tenho a honra de lhe comunicar, oficialmente, que bilhete de loteria aumentou de preço.
- E eu com isso? Perguntei, sem atinar. E Areia, assumindo ar matreiro.
- É que, com bilhete majorado, consequentemente, aumentou minha "comissão"...

O ÓRGÃO
Lembrei-me agora de contar.
Nas horas de folga, Zé aparecia no escritório para conversar com o velho Zé Alexandre sobre passarinho e recordar os tempos de Natal nos anos 20. Lia todos os jornais, até o Órgão Oficial. E cochilava, invariavelmente.
Estava com o Órgão Oficial cai-não-cai da mão, quando um terceiro o previne:
- Zé, o órgão está de cabeça pra baixo. E ele, sem tirar a vista do jornal:
- E mole!

O CASTIGO
Tinha verdadeira aversão a certo governante. Na Confeitaria, em meio à discussão, perde o controle e vocifera.
- Eu só queria que o dr. A. fosse tomar na bunda.
Disse e recocheteou o olhar sobre os componentes da mesa, onde detectou um assumido e outro sobre quem pairavam suspeitas.
Cerimonioso, consertou:
- Peço perdão aos circunstantes dados a este dorido e emocional passatempo sexual. Vou pensar em castigo maior para aquele filho da mãe.

O TROVADOR
Numa sexta-feira, dia da Procissão dos Passos, Areia esperava que a imagem subisse a ladeira para molhar a garganta. A família Amorim Garcia, durante 90 anos, armou o primeiro passo da Via Sacra, inicialmente na Dr. Barata, no velho casarão de meu avô, Coronel Odilon, e, depois, na residência de meu tio Odilon, agente do Loide Brasileiro, na Duque de Caxias. Quando a imagem parou frente ao altar para as cerimônias litúrgicas de praxe, cutuquei o cambista.
- Zé, vai pedir o quê ao Santo?
E ele, em cima da bucha, salvo erro ou omissão da memória, de fato decorrido há mais de três décadas:
- Ó, meu Bom Jesus! Espero de Ti, Justiça! Transforme minha cruz, toda ela em cortiça!

A MORTE
Zé Areia soube usar sua verve até pra morrer. Na hora extrema, volta-se para a companheira que dourou os últimos dias com sua dedicação e chamou com meiguice na voz:
- Venha cá, minha velha, quero morrer em seus braços!
Contou-me ela, que, depois de morto, havia em seu rosto uma expressão de gaiatice, como se estivesse engabelando os vivos.

ENTERRO DE REI
Parecia enterro de gente muito importante. Firmino Moura correu e trouxe da sede a bandeira do ABC, o querido pavilhão, e, com ela, envolveu o caixão pobre.
Muita gente, não. Mas estavam presentes não apenas os boêmios e gente do povo, seus irmãos. Podiam ser encontrados intelectuais, políticos, magistrados, poetas, altos comerciantes, industriais, doutores, pessoas de alto gabarito, citados nas colunas políticas e sociais.
Ao passar o féretro pela esquina da Frei Miguelinho/Duque de Caxias, lá estavam enfileirados os seus colegas de profissão, os cambistas.
Os motoristas de praça, numa combinação de última hora, acionaram buzinas, numa homenagem.
Veríssimo de Melo começou discurso à beira do túmulo, anunciando:
- Desapareceu, hoje, o último boêmio de Natal.

O ÚLTIMO ATO
Era um rei que estava se enterrando ou um João Ninguém, na forma da lei?
Quando alguém queria se comover, vinha um amigo e contava uma anedota, uma passagem, uma frase espirituosa dele e desanuviava o ambiente.
- Lembram-se daquela do macaco com a cabeça cheia de estampilhas?
E ele parecia renascer em quantos lhe queriam bem.

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