Professor, “médico” (cirurgião) e escritor.
José Saramago, no seu livro “Ensaio sobre a cegueira”, foi brilhante ao escolher a seguinte epígrafe dos livros dos conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!”. Afinal, acredito que seja este mesmo, o maior problema do ser humano: a falta de visão.
Portanto, se eu fosse o escritor José Ingenieros, corrigiria a lenda, colocada no seu livro “O homem medíocre”, onde ele relata que Deus querendo povoar rapidamente a terra, fez moldes de manequins, se esquecendo de colocar massa cerebral, contendo o amálgama das boas coisas, em muitas calotas cranianas... na minha visão, bem limitada, “tupiniquim-jerimum-caboclo”, o que aconteceu mesmo foi que Deus fez os manequins e colocou neles olhos incapazes de ver e reparar... e para os gregos não parou aí o “equivoco” de Deus: não satisfeito de nos deixar cegos, ainda fez mais uma peripécia - colocou a felicidade dentro de nós e manteve os nossos olhos voltados para fora, com o intuito de dificultar mais ainda a sua busca... a felicidade se encontra tão perto e tão longe: perto, dentro da gente; tão longe, afastada dos olhos... Por isso, concordo com Einstein que dizia: “Deus não joga dados”. É claro! Ele gosta mesmo é de brincar de esconde-esconde...
Assim, não é de se estranhar que “Herrar é umano”. Afinal, cegos e longe da felicidade, cambaleamos feito “o bêbado com o chapéu-coco, fazendo referências mil, as noites do Brasil”... agora, penso que fica mais fácil de entender o que quis dizer Saramago, na página 131, do seu “Ensaio sobre a cegueira”: “Já éramos cegos no momento em que cegamos. O medo nos cegou, o MEDO nos fará continuar cegos”.
Sei que corro o risco seriamente de ser processado pelo exercício ilegal da medicina, afinal, como um profissional de “corte & costura” - um cirurgião -, eu não deveria fazer nenhum tipo de diagnóstico... mas, por favor, caro leitor, entenda que este diagnóstico, que faço agora, é de mim mesmo, feito pelo mais “cruel” dos meus médicos: a minha consciência.
Sou um cego! E além de cego, tenho um enorme defeito: adoro trabalhar em equipe! E neste mundo competitivo, individualista, egocêntrico e hipócrita, sei que este segundo defeito, pode me levar para as fogueiras da inquisição moderna. Mas, longe, muito longe de mim, não poder exercer a minha liberdade de pensar, pois é através dela que falo, logo existo. Portanto, a minha doença incurável, eu sei que nada mais é do que o olho que não se recusa a reconhecer a sua própria ausência: a sua própria cegueira...
Ah! A memória... Ela me leva, para uns dez anos passados, quando ainda operava em hospitais particulares e atendia aos planos de “saúde”. Pois bem! Estava eu na sala de cirurgia, cuja especialidade é aquela que mais necessita do trabalho em equipe. Estirei a minha mão para Ionaldo (instrumentador, técnico de enfermagem). Não lhe disse nenhuma palavra, apenas estirei a mão. Ele me entregou o instrumento correto: uma pinça. Às vezes, nem estirava a mão, e ele se antecipava, entregando-me o instrumento que estava precisando. Parecia até que ele lia os meus pensamentos. Brinquei com ele. Na verdade, disse rindo coisas sérias: “Meu caro Ionaldo, fico tão seguro com a sua presença aqui. Pois sei que se eu morresse, um dia operando, você terminaria a cirurgia para mim sem problemas!”. Pois é! Nunca me senti inferior - e nem muito menos superior-, a Ionaldo. Pelo contrário: a sua presença me dava uma segurança infinita e necessária para o exercício do ATO CIRÚRGICO.
Volto a Saramago e ao seu ensaio, na página 86: “Perante a morte, o que se espera da natureza é que percamos os rancores, a força e o veneno...”; Vou agora para a página 245, para mais uma vez concordar com você, mestre da visão: “Se continuarmos juntos talvez consigamos sobreviver, se nos separarmos seremos engolidos pela massa e destroçados”. Talvez, lutar - em direção equivocada, em busca da exclusividade-, seja uma forma de cegueira também... não seria melhor, começarmos por nós mesmos? Que tal sermos ÉTICOS?!
Ah! A memória novamente... Prova de residência médica, em cirurgia do Hospital Walfredo Gurgel. Entrava o candidato. Eu fazia várias perguntas, mas a decisiva deixava para o final... Afinal, o melhor dos vinhos não se serve por último?! Assim, perguntava: “Se você tivesse que escolher entre ser operado por um cirurgião extremamente ético, mas sem nenhuma técnica, e um extremante técnico, mas sem nenhuma ética, qual seria a sua escolha?”. Os alunos ficavam apavorados. Esta pergunta não tem nos livros. Embora a resposta fosse tão simples – mas o difícil é ser simples, como dizia Drummond -, muitos não conseguiam acertá-la: ser operado por alguém extremamente técnico, mas sem nenhuma ética, você corre o risco de morrer, pois esse “profissional” não terá nenhum pudor de colocar as próteses, as órteses, etc. etc. sempre em primeiro lugar; mas se você escolher o extremamente ético, mas sem nenhuma técnica, ele nunca irá lhe operar sem se sentir capaz. Ele buscará essa “técnica” pedindo ajuda a outro (irá encaminhá-lo para alguém que possa ser a duas coisas: técnico e ético), pois ele sempre se colocará no seu lugar... Sempre!
Portanto, ser ético é fundamental! E quando aqui falo em ética, não falo nos arremedos e nos remendados com esparadrapos ou coisa parecida... Ser ético é lutar constantemente contra um monstro interno, que nos leva a querer sempre ir pelo caminho do MAL. É lutar permanentemente por uma limpeza interna nos nossos porões, afinal, como dizia Hamlet: “Com quem a beleza poderia manter melhor comércio do que com a honestidade?!”...
Termino, então, aconselhando-o: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!”
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