sábado, 30 de abril de 2011

Todo itinerário tem seu semelhante

Helmut e LeoSodré
numa tarde boemia
no Beco da Lama
Fernando Mousinho
Sociólogo

As nações não têm grandes homens senão contra a vontade delas – assim como as famílias.                      -  Charles Baudelaire

Numa tarde de um dia chuvoso, no coração do bairro do Alecrim, o comércio funcionava normalmente. No Café e Lanchonete Quitandinha, o entra e sai de sempre. Entre um cafezinho e outro, muita conversa fiada sobre futebol, política e mulher -- a dos outros, preferencialmente. Vez por outra chegava um cabeçeiro querendo tomar uma. A farmácia Dutra, de ´seu` Celso Dutra, “o médico do Alecrim”, coalhada de gente. Como sempre.
Ali bem próximo, em frente ao Cinema São Luis, pra cima e pra baixo entre os quiosques do canteiro central da rua, circulava um jovem alto, um galego de olhos claros e rosto afilado. Um tipo insuspeito, pois morava a poucos passos dali. Trajava um sobretudo escuro e um chapéu. Debaixo do braço, um grande embrulho.
Apesar da chuva que caía, eram muitos os amantes da sétima arte que acorriam ao São Luis, famoso pela exibição de películas de faroeste.
No horário do início da sessão, o jovem começou a desembrulhar o pacote, que continha uns seis a oito foguetões. Acendeu um charuto, deu as baforadas necessárias para abrasá-lo, tomou posição firme e concentração de artilheiro. Mirou o alvo, o interior do cinema. Tudo pronto, meteu o charuto no fundo da taboca do foguetão, que partiu feito um raio na direção designada. A operação não foi exitosa, mas o estampido em quatro tempos produzido pelo artefato foi suficiente para provocar alvoroço entre os presentes.
Apesar do insucesso, sem denotar frustração o jovem retomou sua marcha, pra lá e pra cá. Desfilava protegendo por sob o sobretudo o seu aparato bélico de marca indefectível (“Caramuru, que não dá chabú”) e que traz a cabeça do índio como garantia. Solenemente, com um sorriso no canto da boca, parava aqui e acolá e degustava saborosas baforadas do Cohiba. De quando em vez, retomava a operação. Enquanto isso, a gente paralisada de pânico, sem nada entender, perguntava quem ele era, qual a motivação daquela loucura que subvertia a ordem pública estabelecida.
Só não virou caso de polícia devido à chegada de um cunhado, João Mousinho, o qual, chamado às pressas, interrompeu a ação do franco atirador, desmantelou a aparato bélico e restabeleceu a tranquilidade. Foi a única pessoa que José Helmut atendeu, e o fez de pronto.
O episódio nos foi narrado por Zito Mousinho, observador ocular do fato.
Ainda assim, ficou a dúvida no ar. Seria ele louco, subversivo, fora da lei? Anarquista? Ou comunista? Disso na família já havia exemplo.
Helmut era avesso aos clichês, aos ordenamentos e padrões sociais pré-estabelecidos. Sem apego materiais, despreocupava-se até mesmo do próprio corpo para cuidar do seu mundo interior e assim dar vazão a sua liberdade. Não estava nem ai para a ordem estabelecida, para a qual cagava e andava. Queria transgredir e libertar-se dos limites impostos a priori.
Não é um destino exclusivo, muito menos solitário. Não foram poucos os que cruzaram esse itinerário, o da liberdade a todo preço, de Sócrates, o Filósofo das Ruas, a Giordano Bruno, Galileu e Leonardo Boff.
De personalidade forte e contundente conviveu pouco tempo com a escola e o trabalho regular; cedo ganhou o mundo. Circunspecto e contemplativo, nunca foi, porém, amargo. Autodidata eclético, conhecia vários idiomas e discorria sobre temas diversos e complexos. Andarilho dos bairros mundanos de Natal, recitava de cor e salteado trechos d´Os Sertões de e d´ Os Lusíadas.
No DVD “Helmut no Sebo e no Beco”, produzido pela Capitão Gancho Áudio-Visuais, uma série de entrevistas organizada e dirigida pelo irrequieto e dedicado pesquisador  da cultura popular, o companheiro Tertuliano Aires, ele aborda temas no campo da religião, política, folclore, economia, filosofia, antropologia e história. Cita Marx, Homero, Freud, Platão e Einstein.  Uma “colcha de retalhos”, no dizer dele próprio.
Seu ofício não foi outro senão coisar sobre esse mundo estereotipado, fosse na filosofia, poesia ou artes plásticas. Des-hierarquizar o mundo, dotando-o de uma nova ordem, libertária, socialmente justa e livremente aceita. Um mundo tolerante e sem preconceitos. Pois o “preconceito é um entrave ao desenvolvimento social e psíquico do indivíduo”, arrematava José Helmut.

Brasília, 18 de abril de 2011

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