sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A centésima ovelha


Leonardo Sodré*

Quando um animal foge às vezes vai longe. Alguns, entretanto, ficam rondando a casa ou o cativeiro, como se ansiassem por serem encontrados. Uns são tão rápidos que nunca mais são vistos. Outros, com um pouquinho de carinho, atenção e amor vão se chegando e terminam por ficar. Mas, a maioria tende a fugir, mesmo que sejam cercados de carinho, de atenção, como se isso fizesse parte da natureza dos seres. Mesmo conosco, criados à imagem de Deus, acontece o mesmo. Também temos uma natureza fugitiva. Confundimos a real liberdade e caímos nas malhas das tentações, que se apresentam como uma larga estrada de liberdade.
Libertamos a nossa natureza e aprisionamos o nosso espírito.
Jesus Cristo, que alguém disse usar de refinado bom humor no sentido de cativar as nossas boas tendências, disse um dia: “Que vos parece? Se alguém possui cem ovelhas e uma delas se extravia, não deixa às noventa e nove nos montes e vai à procura da extraviada? Se conseguir achá-la, em verdade vos digo, terá maior alegria nela do que nas noventa e nove que não se extraviaram”. (Mateus, 18, 12 a 13).
Ele colocou essa questão logo após ter falado sobre os escândalos. Principalmente os que envolvem crianças, como os que vemos cotidianamente. Crianças sendo exploradas pelos pais para pedir esmolas, abandonadas nas ruas, esquecidas, indesejadas, maltratadas, espancadas e até assassinadas silenciosamente pelos pais.
Quando Jesus falou nos escândalos com crianças foi duro e chegou a dizer:
- Ai do homem pelo qual o escândalo vem!
Depois disso, quem sabe, talvez tenha baixado a voz, sentado, olhado o Céu e colocado novamente a questão da centésima ovelha desgarrada quase como um desabafo, uma última insistência. Tristemente, afinal o mesmo assunto e a mesma lição, o profeta Ezequiel já havia colocado há muito tempo para aqueles corações (Ezequiel 34, 4 a 16).
Jesus já havia feito o segundo anúncio da Paixão e tinha pressa. Queria que os homens entendessem a mensagem, a “Boa Nova”. Por isso abriu, então o diálogo:
- Que vos parece?
Os estudiosos da Bíblia referem-se às passagens contidas no capítulo 18 do Evangelho de Mateus como um “discurso sobre a Igreja”.
Naquele tempo a Igreja estava sendo formada a partir de Jesus. As questões tinham então um enfoque profundo sobre a mesma Igreja. Mas, a que já existia: a Igreja Doméstica.
E a nós, tantos séculos depois, o que nos parece?
Quantas vezes nos perdemos com a esperança de sermos encontrados? Quantas vezes a beleza das paixões nos fez fugir para longe com a esperança de não sermos encontrados? Quantas vezes nos negamos ao reencontro, enquanto “erradas” noventa e nove pessoas querida nos esperavam? E quantas vezes renegamos nosso papel de pastor e deixamos de procurar a centésima ovelha?
É curioso como nestes tempos de tantas informações nos tornamos mestres do julgamento. E, contraditoriamente, temos medo de admoestar, de corrigir, de perdoar. Temos medo de dizer sim e temos medo de dizer não. Falhamos quando nos conformamos com a ovelha desgarrada e não conseguimos abandonar por momentos, sequer, aquelas que nos dão prazer, alegria, orgulho...
Tornamo-nos sectários e não vamos à busca daquela que se extraviou e que muitas vezes, nos desencontros de tortuosos caminhos, sonha e precisa ser encontrada.
Jesus completou no final do diálogo que propôs e que terminou sendo um monólogo:
- Assim também não é da vontade do Pai, que está nos Céus, que um destes pequeninos se perca.

*Jornalista e escritor
(Dezembro de 2001)

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