Castilho, o boêmio da Redinha
“As tartarugas que nasceram no ano em que nasci (1937) nem menstruaram ainda. Ainda vou viver muito”.
Por Leonardo Sodré
Da equipe de O Botequeiro
Numa terça-feira de março de muito calor eu e João Dias fomos entrevistar uma das figuras mais carismáticas da boemia natalense. Castilho, ou Carlos Augusto Pinto, 74, no Bar e Restaurante 294. João havia me telefonado no dia anterior me convocando para o encontro e eu fiquei feliz porque iria me reencontrar com um fraternal amigo, de alguns bares e Carnavais. Comentei com o editor que já conhecia algumas “histórias” engraçadas de Castilho e do seu relacionamento com a cultura e figuras memoráveis da terra de Poty. Quando eu cheguei, Castilho, que já foi jogador profissional na década de 1950, como goleiro do América, já estava diante de uma cerveja, com seu capacete de motociclista do lado e a chave pendurada no pescoço. João Dias, cervejeiro de quatro costados, estava, estranhamente, diante de uma Coca-Cola. Castilho levantou-se e me abraçou afetuosamente. Ele é muito grande, beira um metro e noventa. Fui logo perguntando: E aí meu velho, pronto para a entrevista? Ele respondeu avexado: “Semipronto! Deixe-me tomar mais um copinho”. E sorriu...
Conheci Castilho no Principado de Santa Rita, como eu chamo a casa do empresário aposentado Carlinhos Pacheco, que com sua esposa, a engenheira Gil, recebe como ninguém. Encontrei-o diante de um lancheira de jardim de infância, azul, de onde tirou o kit de sobrevivência etílica: vodca, suco de laranja e gelo. Falando baixinho me confidenciou que dentro da lancheira carregava uma lata de sardinha e um tubo de repelente. “A sardinha é para no caso de chegarmos a algum lugar sem tira-gosto – que não é o caso desta casa - e o repelente é para no caso de eu ficar bêbado em uma rede, em alguma varanda aqui da Redinha ou Santa Rita, cheia de muriçocas”. Sorrimos. Depois de alguns minutos de um papo agradabilíssimo ele foi inspecionar a cozinha da casa. Voltou e novamente cochichou no meu ouvido: “Rapaz... Estou emocionado! Vá ver o cozido que a doutora Gil preparou. Vá!”
A entrevista
- (João Dias) Castilho eu não sabia que você pilotava motocicleta. Você veio da Redinha até aqui nela? Castilho sorria, quando respondeu:
- Deixei a 950 envenenada estacionada do outro lado da rua...
Nesse ponto eu interrompi para dizer a ele que João Dias já conhecia a presepada da motocicleta. O fato é que Castilho nunca montou numa motocicleta. Aliás, tem horror a esse tipo de veículo, mas costuma entrar com seu corpanzil nos bares carregando o capacete, luvas e uma chave dependurada no pescoço. A última que ele aprontou foi no Bar Azulão. Começou a beber logo cedo e quando já estava no meio da tarde resolveu fazer-se de bêbado. Foi aquele fuzuê, com todo mundo querendo tomar o capacete e a chave da moto, que ninguém nunca viu. Castilho, que do outro lado da mesa ria sem parar, me interrompeu. “Tinha um coroa, oficial aposentado do Exército, que estava no bar e que indignado dizia: “eu pensei que este velho tinha juízo”. Aí, o médico Jair Navarro, que é muito espirituoso, disse ao coroa que eu tinha sido motociclista da Polícia do Exército, em Brasília, que eu ia à frente do carro do presidente da República. Essas coisas. Nesse ponto o coroa encheu-se de respeito por mim e disse: “Então ele tem experiência”. Ah! Tem um detalhe este meu capacete não cabe na minha cabeça e isso somente foi descoberto naquele dia”.
- (Leonardo Sodré) E como é a história da nota de 100 reais entre o plástico da carteira de cigarros vazia?
- Ah! Essa é ótima. Vez por outra eu vou ao Centro de Natal resolver alguma coisa. Então passo pela frente daquelas financeiras que emprestam dinheiro a todo mundo e lascam os aposentados e pego aquelas notas promocionais de papel de 100 reais. Depois saio procurando carteiras de cigarros vazias pelo chão. Com o “kit Pegadinha” pronto, divirto-me com os incautos. Sorriu. Pego a “nota” de 100 reais, dobro bem dobradinha e coloco entre o plástico e a carteira de cigarros. Muita gente faz isso quando vai para a praia, lá na Redinha. Depois jogo no chão. Outro dia, no Bar Pé do Gavião, um camarada que vinha de bicicleta deu um freio tão grande atrás dos 100 reais na carteira, que se esborrachou todinho no chão. Todo relado pegou a carteira de cigarros, montou na bicicleta empenada e saiu ainda mais ligeiro. Fiquei imaginando a cara dele lá na frente... - Gargalhadas!
- (JD) Você nasceu em Natal?
- Nasci em Lajes. Não conheci meu pai que morreu quando eu tinha apenas sete meses. Curiosamente a minha filha não conheceu a mãe, porque minha esposa morreu com 28 anos quando ela somente tinha cinco meses. Aliás, sou muito grato a minha irmã, Francisquinha Nogueira, que foi a mãe da minha filha com a ajuda do seu esposo, Luiz. Nesse ponto eu estava com três estados civis, dos sete que acumulei: solteiro, casado e viúvo. Depois completei os outros: casado de novo, desquitado e divorciado. Ainda muito jovem fui para Mossoró onde morei com uma tia até 1944, quando finalmente vim para Natal para estudar no Salesiano, depois Externato São Luiz e finalmente no Marista, aonde me prostituí.
- (LS) Como assim, prostituiu-se?
- Porque foi lá onde eu conheci amigos que me levaram para tudo quanto era bar e cabaré de Natal. O Cabaré de Maria Boa era muito caro, então me iniciei no sexo em um dos cabarés da Rua 15 de Novembro, na velha Ribeira. Aliás, naquela rua tinha um chamado de Ideal, que era muito famoso e ideal mesmo!
- (JD) O apelido Castilho surgiu quando você foi ser jogador – goleiro – profissional do América Futebol Clube?
- Perfeitamente. O apelido foi dado pelos olheiros do futebol. Eu era melhor do que Castilho da Seleção Brasileira. Aí, no início da década de 1950 fui jogar no América. A princípio na reserva, mas logo passei a titular. Naquele tempo as condições eram precárias. Não tinha luva e nem nada. Eram somente cuspe e areia nas mãos. Risos. Aliás - disse mostrando uma foto para comprovar a empreitada -, no Torneio Início de 1954 a nossa equipe, desfilando no Estádio Juvenal Lamartine, encheu as mãos de areia e quando passamos pela frasqueira do ABC jogamos na torcida. Se fizéssemos isso hoje em dia estaríamos todos mortos! - Risos.
- (JD) Quando você ficou viúvo já tinha parado de jogar futebol?
- Rapaz... Pergunta de jornal. Ah! Me lembrei. Terezinha morreu em 1962 e em 1960 eu tinha parado de jogar.
- (LS) Depois que desistiu da carreira de jogador de futebol, foi fazer o quê?
- Depois, trabalhei sempre como desenhista. Comecei na Base Naval de Natal. Depois fui para a Força e Luz, a atual Cosern. Foi quando em 1970 fui convidado para ir trabalhar na similar estatal na Bahia, em Salvador. Ficava vindo a Natal e para a Redinha sempre que tinha uma oportunidade, mas somente voltei de vez em 1998, apesar de já estar aposentado desde 1991, por causa dos filhos. Sabe como é né? Os meninos... Quando eu morava em Salvador ficava doido que aparecesse alguém de Natal. Adorava ciceronear os amigos que iam por lá...
- (LS) Então você estava sempre por dentro das notícias de Natal. Interrompi.
- Sim! Chegava muitos jornais de Natal e o pessoal do prédio onde eu morava confundiam o jornal O Poty com “o pote”. Ô povo ignorante!
- (JD) Qual o bar que você freqüenta na Redinha?
- O único que existe: O Pé do Gavião.
- (LS) E política? Chegou a se meter com política em Natal?
- Somente uma vez para pegar uma carona. – Risos -. O fato é que eu vinha caminhando na Hermes da Fonseca quando vi uma carreata enorme de políticos e muita gente, que ia para a inauguração do Hotel dos Reis Magos, em Areia Preta. Acho que era em 1966. Vinha Aluízio Alves e Aristófanes Fernandes e mais um bocado de gente num caminhão entupido de gente. Não sei por que, parou perto da calçada e eu não contei conversa. Um amigo que estava lá me deu a mão e eu subi, me sentando lá atrás. Aos poucos – fez o movimento de se afastar de lado quase sem se levantar – fui chegando até a frente, onde fiquei perto de Aluízio e Aristófanes. Quando chegou na casa dos Ferreira de Souza, teve outra parada para Aluízio trocar o paletó por uma camisa verde. Aristófanes foi acompanhá-lo e estendeu a dose dupla de uísque – do bom! – para trás, como em busca de um assessor. Mas, o assessor fui eu, que imediatamente fiz esse favor para ele. O homem tinha bom gosto. Tomei em dois goles. Quando chegou no hotel, enquanto eles faziam intermináveis discursos, saí de fininho, ainda com saudade do uísque de Aristófanes, em direção ao Bar Jangadeiro. Foi a minha primeira e última participação na política...
- (JD) Obviamente, quando você voltou para Natal, os amigos de Salvador também vinham lhe visitar...
- Vinham sempre. Uma vez aprontei com um grande amigo, funcionário da Petrobras, que me telefonou dizendo que vinha participar de uma licitação aqui em Natal. Fui buscá-lo no aeroporto de carro, mas levei meu capacete e as luvas. Quando ele apareceu no salão de desembarque lá estava eu com o capacete na mão. Cumprimentou-me visivelmente constrangido e depois pediu licença para falar com a esposa pelo celular. De longe eu pressentia que o problema era a motocicleta que nunca tive. Depois do telefonema ele chegou junto e disse: “Castilho, não me leve a mal, mas eu não ando de motocicleta de jeito de nenhum!”. Eu disse que não tinha problema e que ele esperasse na calçada que eu ia buscar um taxi de um amigo, que era mais barato. Em pouco tempo cheguei no meu próprio carro. E, ele rindo, tascou: “Castilho, você não tem jeito!” Uma vez chegou os deputados estaduais Márcio Marinho e Paulo de Tarso, que precisavam fazer hora para pegar um avião, das 09h até as 21h. Visitamos quase todos os bares de Salvador.
- (LS) E a paixão pela Redinha?
- Desde criança eu veraneio na Redinha. Hoje tenho uma boa casa que construí e moro lá há um bocado de tempo. Não saio nunca mais.
- (LS) E o Carnaval da Redinha?
- É o melhor do Nordeste, tirando Olinda! – Exagerou -. Ou melhor, é empate! Lembro que no Carnaval da Redinha e antes em Salvador sempre me fantasiei de anjo. Somente recentemente me converti à mórmon. E não vá escrever que foi por causa do dízimo, viu? – Risos -. Brinco no blocos Banda do Siri, Redinha dos meus amores, Fiéis do Gavião, Baiacu na Vara e recentemente criamos o bloco A Grande Família, que foi sucesso total neste Carnaval, com bandinha de frevo a ser paga pela Capitania das Artes. Não sei se eles vão receber, mas que tocaram, tocaram...
- (LS) Fale dos seus amigos...
- Ah! Os meus amigos do coração... Lembro muito de Newton Navarro, Luís Carlos Guimarães, Vicente Serejo, Carlos Pacheco, Gil, Véscio Pinheiro, Terezinha, Danilo Bessa, Vera Bessa, Jair Navarro, que é do mesmo lote de Oscar Niemeyer e vive correndo na Afonso Pena, Felipão, que é aposentado do BB, Werner Hackradt, José Neuman, João do Pé do Gavião, Ismael Benévolo, Hélio Rocha, Eunélio Silva, Gilson Barbosa, Anira, Fábio Lima, Vanessa, José Medeiros Rocha, Hugo Pires, Chico Bittencourt, Joca da Hora, Liz Nôga, João da Mata, Carmem, Jorge e Ilinha, você e Carlinhos, meu filho e companheiro.
- E fulano? Ele não me deixou escrever o nome.
- Pule essa parte. – Castilho não gosta de falar de ninguém.
- (JD) Aos 74 anos quais as preocupações com a vida?
- Eu acho pouco viver 70, 80 anos. Ora, as tartarugas que nasceram no ano em que nasci (1937) ainda nem menstruaram e ainda vivem 300, 350 anos! E tem mais, não fazem porra nenhuma... - Risos.
- (LS) E as recordações? Você está aí com um saco enorme de fotos e recortes de jornais...
- São muitas! Tenho inúmeras fotos e recortes de jornais. Aliás, deixe-me pegar uma foto da Peixada da Comadre e da Lanchonete Kixou no setor “B” do meu saco. - Depois, relacionou os bares que freqüentava: Granada Bar, Confeitaria Cisne, Bar Briza Del Mare, Bar É Nosso, Ok Bar, mais desconhecido e que ficava defronte ao cinema Rex, Picado do Monteiro, Carneirinho de Outro, Tenda do Cigano, Centro Cearense e Confeitaria Delícia.
- (JD) Qual o bar da juventude, antes de casar?
- Os que eu já disse e o Soçaite lá nas Quintas aonde eu ia para dançar e também o Andaluzia, na Frei Miguelinho, na Ribeira. Ah! Lembrei-me do famoso Cova da Onça, aonde Woden Madruga me vê muito que eu não conheci, mas continuo freqüentando. - Risos.
- (JD) Você gosta de boemia e de Carnaval. Como era em Salvador?
- Ah! Bem lembrado. Em Salvador eu participava de muitas coisas boemias e do Carnaval. Fui membro de uma confraria chamada Chorões do Canal, uma espécie de clube de choro similar ao Clambom de Natal, que inclusive me elogiou em um DVD (ele mostrou um exemplar) - nesse ponto Castilho se emociona -. Frequentei muitos bares e festas em Salvador, sobretudo no Carnaval. Lembro-me dos bares do Firmino de Itapuã, Quiosque da Janaina, Raso da Catarina (dos intelectuais) e Monte Serrat. No Carnaval saía sempre no Bloco da Associação Etílica Sentimental e Carnavalesca “Chegando Bonito”.
- (LS) E os amores?
- Rapaz... Antes da primeira esposa tive um grande amor. Depois, casei com o segundo amor e o resto foi tudo estagiária... – Risos -. Agora, somente pretendo viver dez carnavais e duas Copas do Mundo.
- (LS) Todo boêmio tem sua bebida preferida. Qual é a sua?
- Comecei bebendo Rum com Coca-Cola, feito você. Depois passei para a aguardente e agora estou no tempo da vodca com suco de laranja. Cerveja para mim é sobremesa. Bebo de sexta-feira a domingo, quando começa o “Fantástico”. Não bebo a prestação, deixo tudo para o final de semana. Sem beber me divirto vendo filmes até de madrugada e rindo com as besteiras das traduções, tipo “aceita uma bebida ou algo assim” ou então “seu filho vai ser enterrado com honras de herói”. Risos.
- (JD) Para terminar. A quem você é grato?
- Sou grato e rendo homenagem ao meu filho Carlinhos, a sua esposo Luciane e a minha neta Luane, que moram comigo e formam uma família cuja marca maior é a alegria. Sou muito feliz em viver em companhia de pessoas cuja bondade é o vetor de suas vidas. Ah! Vocês querem me fazer chorar! Peça uma cerveja aí, João Dias...
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