sexta-feira, 23 de outubro de 2015

LEMBRANDO MINHA INFÂNCIA COM TICIANO DUARTE

Jahyr Navarro
Médico

Ontem, ao deixar o carro no estacionamento que ocupa o terreno que um dia foi a casa de meu pai na rua Princesa Isabel, lembrei-me de Ticiano que morava no mesmo lado da rua e bem perto da nossa residência. Ticiano, bem mais moço, participou ativamente com a gente em todos os programas do nosso tempo de meninice.
Quando guiava-me pela calçada acima, todo esse passado veio à tona e em cada pedaço de chão por mim pisado, saltava uma lembrança, nascia uma saudade. Observando as fachadas das poucas casas que resistiram à fúria do tempo, em cada uma delas surgia uma sombra amiga, aparecia um rosto antigo, lembrava uma história. Velhas recordações que ainda rondam um coração envelhecido de tantas emoções sentidas. 
Lembrei-me também dos amigos de nossa rua que já partiram, mas por uma ironia do destino, ainda permanecem na nossa retina caminhando pela mesma calçada, dantes tão sulcada pelo peso e a constância dos nossos passos. Eles não tinham nomes, eram todos apelidados: Biguá, Cavaco, Touro, “Luiz Senhora”, Pescoção, Magricela, Parrudo e outros mais. Apenas Ticiano, Jurandyr – meu irmão – e eu, não fomos contemplados com esta adjetivação tão carinhosa de identificação.

Os nossos encontros aconteciam na “venda” de D. Sofia – avó de Ticiano e por contiguidade, nossa também – situada na esquina da rua Princesa Isabel com a rua Apodi. Era ali onde as programações eram feitas: atravessar o Potengi a nado, remar em suas águas na baiteira de seu Zezinho, subir o morro caçando passarinhos com baladeiras até avistar o mar, passando antes pelo morro de Mãe Luiza, ou bater pelada no quintal da casa de meu pai. Outros programas eram frutos da improvisação.

Ticiano sempre soube o quis. Sempre pendeu para a intelectualidade e por isso, se omitia das aventuras mais extravagantes. Estava sempre com um livro por perto ou fazendo um comentário gracioso sobre qualquer assunto. Ele sempre soube o que quis.

O tempo foi correndo e cada um – independente do carinho da turma da rua – seguiu seu rumo formando novos círculos de amizade. Ele formou-se em Direito, assumiu o jornalismo, exerceu várias funções públicas e atingiu o ápice na hierarquia maçônica. Na questão política, sempre teve um lado e suas convicções nunca sofreram alterações. Ele sempre soube o que quis!

De vez em quando, a gente se encontrava, ora, nos enterros de pessoas amigas, nas missas de sétimo dia, nos supermercados, em reuniões sociais e esporadicamente nos bares e restaurantes. Em todas essas ocasiões ele trazia sempre no rosto uma alegria contagiante. Quando começava a dar sua opinião sobre qualquer assunto, punha sempre uma versão colorida. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras harmoniosas, ele conseguia excitar a nossa imaginação com sua conhecida e risonha exuberância em defesa do gosto que sentia em viver a vida à sua maneira.

A última vez que conversamos, ele já não era mais o mesmo. Não trazia mais no rosto aquela alegria tão contagiante. Seus passos eram lentos e cadenciados e apoiando-se sempre em sua inseparável bengala, mostrava claramente seu descuido com a saúde física. Ficamos por pouco tempo trocando amenidades ao lado da nefasta frialdade, até então, desconhecida nos nossos encontros. 

Quando voltei a vê-lo – depois da triste notícia – ele já estava posto em seu caixão, exposto no salão nobre da maçonaria. O ímpeto de emoção que senti foi esvanecido ante a serenidade de sua fisionomia. Havia nela um quê de conformação, de uma aceitação explicita para o ocorrido. Faleceu fazendo o que mais gostava, num simpósio ao lado do grande amigo e companheiro de antigas jornadas Woden Madruga, debatendo seus argumentos com muita firmeza. Em consequência de seu entusiasmo, veio a falecer. Ele, infelizmente não ouviu a voz de seu corpo e, eu, mais uma vez, perdi um amigo para a obesidade.

Logo na saída, ao deixa-lo no salão onde dormia o sono eterno, deparei-me com um homem bem humilde que olhando para Ticiano, verteu duas lágrimas que escorriam sobre uma face anêmica e depauperada. De súbito, lembrei de um ditado  que diz: - “há sempre  uma esperança para um homem que ainda é capaz de chorar...”

Fragilizado pelo ato e pela forte emoção que sentia, retornei onde estava Ticiano, e ao seu lado rezei para que o bom Deus o protegesse em sua nova missão. Ao deixa-lo pela última vez, caminhei, mas já desprovido das lágrimas de esperança, que há muito estavam ressequidas de tanto umedecerem meus olhos em incessantes despedidas.          

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