quarta-feira, 21 de março de 2012

CRÔNICA PUBLICADA NO "O BOTEQUEIRO" NR. 14

Eu e meu pai no coreto da Praça Pedro Velho, em 1959

A força do hábito

Por Leonardo Sodré
Jornalista e escritor

Meu pai – já falecido - José de Siqueira Leite, ou apenas Siqueira, como era conhecido, trabalhou mais de trinta anos numa empresa que tinha uma rede de lojas cujo nome fantasia era “As Nações Unidas”, que vendia tecidos. Transferido para Natal em 1953, foi gerenciar uma unidade que funcionava na esquina da rua João Pessoa com a avenida Rio Branco. Conhecia como ninguém o seu ofício e identificava de longe os mais diversos tipos de tecidos. Também, era um boêmio de primeira, com a facilidade de ter que se deslocar pouco para os drinques do final do dia. Afinal, o bar da Confeitaria Cisne, de propriedade do meu padrinho Múcio Miranda e mais dois irmãos, ficava vizinho as Nações Unidas.

Durante muitos anos papai freqüentou os mais diversos bares de Natal. Nunca chegou para o jantar. Era diarista. Lembro-me que, às vezes, ele saía do seu reduto etílico para incursões na Confeitaria Delícia, Bar do Lourival, Bar Azulão, Bar de Nazi, etc. Nos finais de semana costumava levar a família para almoçar na Peixada da Comadre, quando ainda era nas Rocas, depois da sua pescaria, que ele não abria mão.

Em 1974, já com várias filiais das Nações Unidas abertas e um armazém na Tavares de Lira, onde ele se instalou como gerente geral, resolveu se aposentar e colocar seu próprio negócio. Ele não sabia, mas essa decisão provocou uma tremenda alteração no “modus operandi” da boemia, visto que ele envolveu minha mãe nesse processo de abertura da sua própria loja, um armarinho no Centro de Natal, que funcionou até a uns dois anos, quando minha mãe, também, se aposentou.

Minha mãe, Maria Luíza Sodré de Siqueira Leite, ou Marizinha, como é mais conhecida, tinha 41 anos na época da abertura do “Sodré Armarinho”, na rua Coronel Cascudo. Até então era uma pacata dona de casa, que passava as noites esperando por papai, que cumpria o seu ritual boemio. De repente, estavam os dois trabalhando juntos na pequena loja, que depois ficou bastante conhecida na cidade pela variedade de estoque e pelas habilidades de mamãe que arranjava soluções para os mais diversos desejos da sua clientela, a maioria formada por costureiras profissionais.

No quesito boemia a coisa ficou complicada para papai. Como ele iria fugir de ir para casa, considerando que tinha que deixar mamãe depois do expediente?

Ele capitulou e criou um hábito diário de ir beber sua cerveja juntamente com ela, todos os dias, no velho “Kazarão”, que ficava na rua Campos Sales, onde hoje existe um edifício residencial, próximo também da Câmara dos Vereadores. No Kazarão, ele sempre se instalava numa mesa ao ar livre, debaixo de frondosas mangueiras. Às vezes ia também com ela – vigilante – para um boteco na avenida Alexandrino de Alencar, perto de sua casa, e durante muito tempo nunca mais andou sozinho pela noite.

Mas, como nada é eterno, um dia ele passou um “pitu” em mamãe. Saiu do armarinho direto para casa, dizendo que não estava com vontade de beber. Parou o carro em direção a garagem e quando mamãe ia descendo para abrir o portão ele disse:

- Não abra! Vá entrando porque eu esqueci um documento importante na loja, que tenho que levar logo cedo para a Receita Federal.

Federal é palavra séria e mamãe não entendia bulhufas da parte administrativa da empresa. E, papai feliz da vida, fez carreira em direção da noite. Dizem, para atender a um convite de Paulo Lira (Goiaba) para ir “não sei a onde”.

O fato é que por volta das duas horas da madrugada mamãe ouviu o barulho do Opala entrando na garagem. Mas, depois de mais de meia hora, nada de papai entrar. Olhou pela janela da cozinha para ver se tinha saído novamente, mas o carro estava lá paradinho. Então, abriu a porta do terraço e lá estava ele, olhando para a rua, vez por outra olhava para o lado da garagem. Numa mão segurava uma pasta 007, “provavelmente cheia de documentos para a Receita Federal” – disse mamãe -, e na outra um cigarro Minister, pela metade.

- Siqueira! O que danado você está fazendo aí? Não vai entrar, infeliz?

Papai virou-se e olhou para mamãe meio assombrado. Demorou alguns segundos colocando os pensamentos em ordem e disse com uma voz embargada de cerveja:

- Estava lhe esperando. Por onde você entrou?  

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