quinta-feira, 22 de março de 2012

Memorial do Guerrilheiro Glênio Sá - Cidadão Natalense

--- Walter Medeiros*

Último dia do ano de 1999. Uma jovem repórter percorre os arredores da Torre de TV de Brasília. Olhar atento, ela observa cada pessoa, dos turistas aos hippyes, principalmente olhando para os seus braços esquerdos e mãos direitas. Procurava alguém que tivesse um cordão amarrado no braço esquerdo e uma Bíblia na mão direita. Aproximava-se da meia-noite. Em menos de uma hora chegaria o ano 2000, que tanto trabalho deu para entenderem tratar-se do último ano do Século XX e não o início do novo século. Ela procurava não dar na vista, mas olhava para todos que encontrava, preocupada em não deixar de enxergar ninguém. Se aquela pessoa que procurava estivesse no local ela não poderia deixar de localizá-la.
O frio era grande, mas ela era acostumada com aquelas temperaturas do cerrado e sempre saía de casa com o agasalho certo; não teria nenhum problema. Não tinha perigo de deixar de ver a pessoa que procurava, se ela estivesse no local, pois ela conhecia cada canto da torre. Estava acostumada a fazer reportagens e visitas ao local, às vezes até para almoçar no seu restaurante. Ou mesmo para levar amigos de outros estados a fazerem compras na tradicional feirinha do local. Havia uma ansiedade muito grande, pois o encontro com aquela pessoa poderia ser emocionante. Ela queria saber aonde e como teria sido a vida da outra pessoa nos últimos 26 anos.
A ansiedade aumentava na medida em que aproximava-se da meia-noite. Seria a passagem  do ano e início do reveillon de Brasília. Através de um pequeno televisor a pilha, ela vira de relance festejos da chegada do ano em outras partes do mundo. Na solidão de sua missão jornalística, via a beleza dos fogos de artifício iluminando o céu da sua amada cidade. Correu do seu rosto uma lágrima. Era a emoção da chegada do ano 2000, a frustração por não ter encontrado a pessoa que esperava e o calor anônimo das pessoas que a cumprimentavam e desejavam “Feliz Ano Novo!” e “Feliz Ano 2000!”. Não encontrou o homem do cordão no braço e a Bíblia na mão. Mesmo assim aproveitou aquele ambiente que viu e juntou dados para uma matéria, na qual contaria o que tinha ido fazer na Torre de TV naquela hora e revelaria para seus leitores tudo que sabia a respeito do homem que fora esperar. 
A imprensa nacional atentou para o encontro marcado por Glênio Sá, ex-guerrilheiro do Araguaia, com um ex-companheiro de cela. Eles combinaram que passariam o réveillon juntos na Torre de TV de Brasília. Um jornal da cidade registrou a história em grande reportagem com a chamada: “Torre de TV: local em que dois ex-presos do regime militar marcaram um encontro 25 anos atrás para comemorar a liberdade”.  Glênio sobreviveu ao regime militar, sem dedurar ninguém, mas não pôde contar ao amigo sobre a nova etapa da sua vida, quando reestruturou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em Natal, casou-se, teve um casal de filhos, acreditava na revolução. Não conseguiu encontrar o amigo para falar de coisas boas. Seus contatos resumiram-se ao período da prisão, havia tantos anos.
Enquanto Glênio estava preso por motivos políticos, o outro fora parar no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), no Setor Militar Urbano acusado de desviar armas do Exército. Era um recruta, preso num cela vizinha. Ninguém sabia o seu nome. Constava que era paranaense e fazia contato com o vizinho de cela, apavorado com os gritos vindos das sessões de tortura. A Torre de TV era a única vista externa que os dois tinham a partir da prisão. Eles subiam numa pia para contemplá-la, enquanto sonhavam com a liberdade.
A forma de se identificarem depois de tantos anos seria usar um cordão amarrado no braço esquerdo e conduzir uma Bíblia na mão direita. Mesmo Glênio tendo vivido fora de atividades religiosas, demonstrava grande respeito pelas Igrejas e o uso da Bíblia no encontro não seria totalmente despropositado, pois o seu amigo era evangélico.  Todos estavam atentos no dia. Mas Glênio não poderia estar lá. Seu amigo também não foi ao encontro. Talvez jamais saibamos porquê. A jornalista lançou um olhar no infinito, para onde mandava em pensamento suas homenagens a Glênio e dava por encerrada a busca pelo encontro que o tempo e a vida desfizeram.

*Jornalista

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