sábado, 22 de novembro de 2014

Eu, aos pedaços...

Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor.

Era um dia de sol. E Xerxes, rei persa (485-465 a.C), querendo mostrar o seu poderio, ordenou que juntasse todo o seu exército, e quando viu o Helesponto tomado pelos soldados e navios - (reza a lenda que eram tantos, mas tantos soldados, que se o último quisesse ir para a primeira fileira, ele levaria cinco dias caminhando ininterruptamente) -, o rei chorou. Chorou e soluçou! Preocupados com esta atitude, os seus ajudantes mais próximos quiseram saber o motivo de tantas lágrimas, e Xerxes respondeu: “é que me veio à mente agora, lamentar sobre a brevidade de toda vida humana, pois dentre toda essa multidão de homens que aqui estão, dentro de cem anos, nem um único sobreviverá”...

A vida é uma escola, com uma característica interessante: a prova vem sempre antes do aprendizado. E nesta escola, sem dúvida nenhuma, a maior professora é mesmo a Morte. Alguns tentam minimizar os efeitos do seu aprendizado, como no caso dos poetas Fernando Pessoa e Mário Quintana. O primeiro quando lamenta que tem dó das estrelas por luzirem há tanto tempo; e se pergunta se não haveria um cansaço das coisas, um cansaço de existir... O segundo quando afirma que tem medo não do sono eterno, mas sim da insônia eterna. Mas é o mesmo Mario Quintana que depois se contradiz ao dizer: “Morrer; que me importar? O danado é deixar de viver!”. E não adianta querer fazer uma escada em forma de caracol para que ela chegue ao nosso quarto, tonta e cansada, sem forças para nos levar, pois a Morte vem e vem mesmo. E quer queiram quer não, ela chegará para todos.

Eu também sou um professor, que transmite ensinamentos muito aquém dos transmitidos pela professora Morte. Mas ao admitir que sou professor, automaticamente eu estou também dizendo que sou duas outras profissões: médico e escritor. Todo professor é médico, pois tenta curar a pior de todas as doenças, a ignorância da alma. Todo professor é escritor, pois ele nada mais faz do que colocar os seus sonhos nos livros de vida de cada um dos seus alunos, e estes ao saírem pelo mundo carregando esses sonhos, nada mais fazem do que ratificar a frase: “O professor se liga a eternidade; Ele nunca sabe onde cessa a sua influência”.

Mas se todo professor é também médico e escritor, ele também é livro... Sim! Os alunos também escrevem as suas estórias no livro de vida dos seus professores. Agora fica mais fácil entender o que Neruda afirmou no seu “Confesso que vivi”: “Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas -  as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado”... Recentemente, páginas amarelas - ou melhor, páginas cinzentas, tristes, e dolorosas-, foram escritas neste meu livro de vida. E foram escritas por um aluno meu...

Joinville. Sábado à tarde. Estava no congresso de Educação Médica (COBEM). O celular vibrou no meu bolso. Não atendi de pronto. Estava no meio de uma palestra interessante e resolvi enviar uma mensagem dizendo: “ligarei em seguida”. Novo toque e uma mensagem: “Professor! Precisamos falar com urgência!”. O coração betabloqueado acelerou o seu compasso. Pressenti que algo terrível acontecera. E aconteceu! A noticia veio do outro lado do celular, pelo choro de outro aluno meu, Dênis: “Ele morreu, professor. Nosso amigo morreu. E Igor foi junto também!”. Estava recebendo uma das mais terríveis notícias: a morte do meu aluno Ivan Brasil e do seu filho de 12 anos, Igor Marinho (uma criança que todo pai deste mundo gostaria de tê-lo como filho).

Um acidente terrível na estrada que liga Mossoró a praia de Tibau (RN). Mais uma vez Tibau... Como se não bastasse há 48 anos, ter sido palco da morte do meu pai, agora, a mesma Tibau, reescreve o seu nome em páginas tristes do meu livro de vida... Fiquei desnorteado. Não sabia se chorava, se voltava para sala, se acreditava naquilo que tinha ouvido há pouco. Confesso que não sabia o que fazer. Interessante! Logo eu, que a cada plantão na Liga Contra o Câncer, me encontro com a professora Morte, não tinha ainda aprendido a lição... e acho que nunca aprenderei.

Fui beber uma água. Sentei e respirei fundo. Via em volta pessoas rindo, conversando, enquanto dentro de mim, nas páginas cinzentas do meu livro, estava sendo escrito um capítulo bastante doloroso. Tentei mudar o tom preto das letras. Lembrei-me da viagem que tínhamos feitos com as nossas esposas, na travessia dos lagos Andinos. Ivan, sempre aventureiro, ria da minha covardia de ter subido todo o Cerro Catedral, em Bariloche, com os olhos fechados... Ivan, que toda vez que eu ia a Mossoró, fazia questão de me receber com jantar e o melhor dos vinhos (foi com ele que aprendi os prazeres do deus Baco); Ivan, que era capaz de cometer uma indelicadeza com você, mas no outro dia ligava pedindo desculpas, envergonhado com a sua atitude; Ivan, que no nosso penúltimo contato, me fez lembrar uma passagem da Bíblia (Lucas 17, 11-19), quando dos dez leprosos curados por Cristo, apenas um voltou para agradecer...

Voltei para o hotel. De repente, a cidade catarinense se viu escurecendo e um temporal começou. Cheguei todo molhado ao quarto. Molhado, por fora e mais ainda por dentro. Chorava, afinal, chovia lá fora, e fazia tanto frio. E embora uns dizendo que nem sempre se ver lágrimas no escuro. Eu chorava, no escuro do quarto. Tava tudo tão cinza. Tão vazio. E a noite ficava me martelando a cabeça: “Por quê? Qual a lição? Qual a lição?”. É! A professora Morte mais uma vez nos ensinava: somos um fósforo acesso de frente para um mar revolto, que sopra a toda hora querendo nos apagar... Não consegui dormir.

Domingo, voltei ao COBEM. Mas nada era capaz de tirar as páginas cinzentas da minha memória. Estava sozinho, desnorteado, precisando tanto da minha Viviane e do meu Lucas, que resolvi apelar para os amigos sempre tão fieis: os livros. Fui a um shopping perto do hotel. Entrei em uma livraria, peguei alguns exemplares e resolvi sentar, para folhea-los. De repente, escuto vozes. Eram de crianças, que estavam em volta de um violão. Aí eu percebi que nem sempre se vê, “Mágicas no absurdo, Mágicas no absurdo”...

Tristeza e alegria; vida e morte. É assim que caminha a humanidade. E o espetáculo tem que continuar...  Mesmo sabendo que naquela mesa, não haverá mais histórias contentes do que se fez de manhã; mesmo sabendo que naquela mesa do canto, haverá sempre uma taça a menos, com metade apenas do vinho EPU, como Ivan gostava de ensinar...

Ah! A saudade dele vai doer bastante... Eu estou em pedaços.

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