domingo, 24 de março de 2013

A agulha e a linha


Francisco Edílson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor.
(Texto escrito em 19/03/2006)

            Nunca gostei de trampolins. Em criança, no Aeroclube de Natal, ficava olhando, lá de baixo da piscina, todos se despencarem, lá de cima. Era água pra tudo que é lado. E quanto mais gorda era a pessoa, maior era o espetáculo. Todos se divertiam, menos eu... 
            No início, achei que não gostava deles (dos trampolins) por medo de altura. Mas, depois que conheci o Zaratustra - de Nietzsche - e ouvi-o dizer que “Aquele que escala montes ri-se de todas as tragédias da cena da vida”, percebi, então, que não era a acrofobia, o meu problema com os trampolins. 
            Hoje, vejo que na verdade, o que me incomodava naquele objeto em forma de prancha, que serve para as pessoas saltarem e caírem nas piscinas, é o fato de despertar em mim certo sentimento de pena, de tristeza e, algumas vezes, também, de revolta... 
            Tenho dó dos trampolins. Ficam ali - solitários e tão expostos ao calor, aos ventos, e porque não dizer: a todos os tipos de pessoas. Principalmente, àquelas que querem se dar bem “à custa dos outros”. Esses oportunistas pulam, pulam e pulam... Divertem-se como nunca! E quando estão satisfeitos – saciados de tudo –, abandonam seu trampolim em busca de outros mais “interessantes”. Medeia - de Eurípides-, tinha razão quando gritou para Zeus: “Por que dotastes os homens de meios certos para reconhecer o ouro de má qualidade, e por que não há, no corpo humano, marca natural que distinga o malvado do bom...!”. 
            É por isso que eu tenho pena, fico triste e me revolto quando me lembro dos trampolins. Pois, eles nada mais são do que objetos descartáveis. Ah! E como é doloroso ser um objeto descartável... Vejam o exemplo das seringas de plástico. Após servirem de veículo para administrarem um medicamento essencial para manutenção de uma vida, são logo colocadas no balde de lixo, para serem incineradas. Como seria bom se as seringas, após o seu uso, pudessem ser lavadas e oferecidas para alguma criança, que a usaria como brinquedo de lança água. Mas não! O objeto descartável - até pelo próprio nome-, após o seu uso, é desprezado: ficando sem utilidade. 
            Outro dia, numa reunião do Departamento de Cirurgia da UFRN, encontrei um professor já aposentado. Ficamos horas conversando. Não matando o tempo – pois se assim o fizéssemos, ele, o tempo, é que nos enterraria - como lembrava o Machado de Assis. Estávamos, mesmo, era colocando os assuntos em dia. Aí, ele me saiu com essa do Oscar Wilde: “O drama da velhice consiste, não em ser velho, mas em ter sido moço”. 
            Logo em seguida, ele me lembrou de quando ainda estava na ativa, e via toda aquela legião de alunos correndo atrás dele: ora para ser indicado como auxiliar de alguma cirurgia; ora para ser indicado como monitor da sua disciplina. E passados todos esses anos, ao entrar novamente no hospital, onde tinha dedicado quase toda a sua vida, via os mesmos alunos daquela época – agora na qualidade de professores-, virarem o rosto, fazendo de conta que não o conhecia. 
            Camus foi verdadeiro, e ao mesmo tempo sombrio, quando afirmou: “Envelhecer é passar da paixão, à compaixão”. E foi por pura compaixão - por ver aquele homem e os seus olhos umedecidos pela ingratidão-, que resolvi lhe falar sobre um conto chamado “Um apólogo”, de Machado de Assis, para aliviar, portanto, um pouco a sua dor (e a minha também). E assim comecei: “Era uma vez uma agulha, que perguntou a um novelo de linha: - por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa nesse mundo? Então, toda orgulhosa respondeu a linha: - você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... 
            - Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que faço e mando...
            - Também os batedores vão adiante do imperador.
            - Você imperador? Questionou a agulha. A linha toda soberba, deu a “cutilada” final: - ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira?
            A agulha ficou calada e triste, até que um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: - Anda, aprende, tola. Cansa-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida... Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico!”.  Quando terminei essa estória, vi o meu antigo mestre rir, para comentar logo em seguida, como o Machado de Assis fez, no final do seu conto: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”.

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