sábado, 12 de abril de 2014

Além do arco-íris









Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor.

“Meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas...
E o que vejo a cada momento,
É aquilo que nunca antes tinha visto...
Sinto-me nascido a cada momento,
Para a eterna novidade do mundo”
(Fernando Pessoa)

Os despertadores são terríveis! Eles têm a difícil missão de nos alertar de que nem todo dia frio, terá um bom lugar para se ler um livro... Cinco horas manhã, de um sábado, e o danado toca de forma estridente: “Levanta-te e anda! levanta-te e anda!”. Bem que ele até quis não dar ouvidos à intimação do despertador, mas a falta de um cartão corporativo do governo para pagar as suas contas, falava mais alto: “Vai trabalhar vagabundo; vai trabalhar criatura!”.

Chovia lá fora! E mesmo o frio adentrando ao quarto, não havia outra alternativa. Teve que se levantar, mas não antes de olhar para o lado. Viu a sua bela esposa dormindo como um anjo. Quis ficar abraçado com ela, mas não tinha mais tempo a não ser de fazer um rápido cálculo de quanto a amava... e o resultado foi: 1008! Era o número de Tensões Pré-Menstruais (TPM) de convivência! Isso sim é que é amor!

Ao chegar ao banheiro, ele constatou que não há frio de rachar que não possa piorar: a resistência do chuveiro tinha queimado na noite anterior. “Mas a vida o que quer da gente não é coragem?!” Pensou... Então, ligou o chuveiro e foi para debaixo dele: “tomara que Heráclito tenha mesmo razão quando disse que o universo é uma dança de opostos, onde cada coisa se transforma em outra: coisas frias esquentam”, pensou ele novamente.

Antes de sair, fez o ritual de sempre: beijou o filho e a esposa amada (1008 vezes de TPM solidária), como se fosse a última vez... Afinal, é tudo tão incerto não é mesmo?! E incerto seria o caminho que o levaria ao hospital, para mais um plantão. Pois, a noite toda de chuva, castigando as ruas já tão castigadas de anos de desgovernos, na sua cidade, fazia com que o seu caminho de sempre, tivesse que ser mudado... E haja alagamentos! - Praguejou ele.

Coitado! Esqueceu-se ele do que certa vez disse o filósofo imperador Marco Aurélio: “Todas as coisas são entremeadas umas às outras; um laço sagrado as une; não há uma coisa sequer que esteja isolada de outra”. Então, se por um lado à mudança de rota o fez percorrer um caminho mais longo; por outro, o permitiu de “curar” a sua vista cansada, diagnosticada há tanto tempo, por Oto Lara Resende: “O que nos cerca, o que nós é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio... nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença”.

Mudança de rota; mudança de visão! Que lindo arco-íris, ele percebeu mais adiante. Olhou para o relógio. Ainda restavam alguns minutos para não chegar atrasado ao seu destino. Por isso, parou o carro, pegou o celular e fotografou o arco-íris. E neste momento, teve a “consciência cósmica” de que algum tesouro o esperava para ser descoberto naquele dia. Sim! Ele se lembrou da sabedoria de Epicuro: “Deus introduziu o homem para ser um expectador de seus trabalhos, e não apenas um expectador, mas um intérprete”...

Chegou ao hospital. Passagem do plantão. Ele ouviu atentamente todos os casos, mas um chamou-lhe mais atenção: 33 anos, era a mesma idade em que seu pai tinha quando faleceu. Trinta e três anos era a idade da jovem paciente, portadora de uma neoplasia avançada, cujo fim se aproximava. Ao chegar à beira do seu leito, ele teve uma surpresa. A acompanhante da paciente era sua irmã gêmea idêntica (univitelina). Ali ele percebeu: juntas, lado a lado, vida e morte; A que ficava e a que partia. E neste momento, de repente, não mais do que de repente, ele viu o seu tesouro que estava além do arco-íris... Ele presenciou uma das cenas mais belas vistas nestes 25 anos de profissão. Sim! Existe beleza também na tristeza. Pois, “As mais belas harmonias vêm dos opostos”... Vida e morte!

Ele, temporariamente curado da sua vista cansada, viu algo que ficará eternamente guardado em sua lembrança, pois como dizia Drumonnd: “O eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”... Ele viu a irmã/acompanhante, abrir a sua bolsa, pegar um frasco de creme hidratante e massagear os pés da sua metade que estava morrendo. Massageava e chorava...

Pés... Ele lembrou-se que vem da palavra “podos” em grego, que está relacionado a palavra “paidos”, que significa criança. Ou seja, a irmã/acompanhante - melhor do que muita morfina, ou do que qualquer antibiótico de última geração-, estava cuidando dos pés da sua metade que ia partir. E cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nela... e ninguém retornará ao reino de meu Pai se não voltar a ser criança novamente, não é mesmo?

Pois bem! Ele, diante daquela grande lição de amor, aproximou-se da irmã/acompanhante e perguntou-lhe se poderia fazer alguma coisa por elas duas: a vida e a morte. A resposta foi: “Deixe-me apenas ficar aqui, doutor, junto dela, que o senhor já está fazendo muito por nós duas!”.

Ele tocou no ombro da irmã, ao mesmo tempo em que tocou na mão da paciente. Balançou a cabeça, não apenas como um consentimento, mas sim, como uma reverência àquele momento. Então, dirigiu-se ao quarto de repouso, com a desculpa de que ia pegar o seu estetoscópio, mas na verdade ele queria mesmo era ficar sozinho, para poder deixar as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, sem ser visto (bobagem! Homem chora sim!)... e ele chorou, agradecendo a Deus por tudo: pela esposa, pelo filho, pela chuva, pela resistência queimada do chuveiro, pelas ruas alagadas, pela sua profissão e mais ainda por poder, naquele dia, conseguir enxergar além do arco-íris...

P.S. Dedico este texto a neta de Fernando Pessoa, a enfermeira Renata Lima Pessoa (ela sabe o porquê...).

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