segunda-feira, 28 de março de 2011

COM QUE CARA EU VOU?

Públio José – jornalista
(publiojose@gmail.com)
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                         Há uma composição de Noel Rosa, imortalizada na voz de inúmeros talentos da nossa música popular, que pergunta “com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?”. A letra é uma gozação em cima do próprio Noel – ou de alguém de seu relacionamento – que, em virtude de dificuldades financeiras, estava na condição de não ter uma roupa digna para se fazer presente ao convite de um amigo para uma festa, para uma noitada numa gafieira ou algo semelhante. Estou me utilizando do talento de Noel, da sua veia humorística, da sua capacidade de transpor para a música, com reconhecida maestria, fatos corriqueiros da sua vida, e da rotina de pessoas do seu relacionamento, para ilustrar um acontecimento local que aponta o delírio, a lunaticidade que atinge gestores públicos em determinadas ocasiões. Pois de outra forma não se pode qualificar os fatos que envolvem Natal e a Copa do Mundo.
                        Só que o episódio narrado em forma de música por Noel Rosa registra uma brincadeira. Ou, mesmo que seja, uma dificuldade vivida por alguém em determinado momento. Já o manto delirante que encobre a geografia estatal natalense apresenta conotações bem diferentes. E com potencial suficiente para causar grandes estragos. Danos, inclusive, que, se abrirmos o compasso, se refletirão em escala muito maior, se espalhando pelo Estado inteiro, tendo em vista a importância que Natal desempenha no contexto norteriograndense. Quando vemos a realidade encontrada pelo povo, quando busca os serviços mais elementares oferecidos pelo poder público, aí se delineia mais forte esse devaneio de se construir um novo estádio de futebol em Natal, ao custo de R$ 1,2 bilhão. Com isso não quero me incluir no bloco dos que são contra a participação da cidade na Copa do Mundo de 2014. Muito pelo contrário.
                        Mas não posso deixar de “ficar arrupiado” (como diz o matuto) com soma tão astronômica imobilizada em uma só atividade enquanto a maioria da população pena diariamente à procura da solução de problemas que envolvem saúde, educação, segurança e outras demandas pessimamente administradas pelos poderes constituídos.  E a questão não envolve somente o fato de estes serviços serem prestados pessimamente. O problema é que, hoje, vários destes serviços já nem estão sendo prestados à população – em função da degradação da capacidade gerencial e do desacerto financeiro que atinge a administração pública. Ora, se educação, saúde, malha viária e os próprios órgãos estatais estão em pandarecos, quem garante que a gigantesca e complexa estrutura esportiva que tais gestores planejam construir não se degradará igualmente com o correr do tempo? E aí como Natal vai ficar?
                        Super endividada? Sem eira nem beira? Vendo preciosos recursos públicos forrar bolsos outros? Em função de quê? Vê-se que a demanda para Natal fazer parte da Copa do Mundo poderia ser suprida numa escala mais condizente com nosso porte, com a bitola esportiva local. E nunca com uma estrutura gigantesca, portentosa, que, para ser erguida, está a exigir a garantia de ativos que futuramente farão falta às carências coletivas da cidade. No popular: a consignação dos royalties do petróleo, como garantia para a construção do futuro elefante branco (Deus queira que não), é “jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”, como diria Dona Mariquinha, barraqueira da Feira do Alecrim, ao que parece mais entendida nesses meandros dos que os doutos que estão a tratar do assunto. Que por sinal, e em síntese, assumiu aspectos tão espantosos que não se tem mais palavras para descrevê-lo.
                        Voltando a Noel. Façamos a adaptação da frase “com que roupa eu vou?” para “com que cara eu vou?”. Pois assim os responsáveis por essa loucura se indagarão futuramente – depois que a cortina do espetáculo se fechar e o ingresso for cobrado. Aí com que cara verão a continuidade das intermináveis filas em postos de saúde carentes de médicos, de remédios, de tudo? Com que cara trafegarão por ruas e avenidas esburacadas? Com que cara verão os informativos atestando os crescentes índices de violência? Com que cara verão a população indefesa diante da dengue? Com que cara verão o nível de ensino descendo ladeira a baixo, com escolas degradadas e professores despreparados? Com que cara irão aos eleitores pedir voto? Com que cara, enfim, entoarão o samba coletivo do prejuizo, da decepção (diante da majestática – porém ociosa – Arena das Dunas)? Sim, com que cara? Pimba na gorduchinha?  

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