segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Um passeio no Céu


Leonardo Sodré*

“Oh pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”.

(Chico Buarque)

Há nove anos meu único filho morreu vítima de um acidente automobilístico. Naquele dia e nos outros, até hoje, convivo com a impressão de que uma parte muito grande do meu ser foi embora com ele. Henrique, esse era o seu nome, ficou impregnado em muitas coisas, principalmente nos meus sonhos e nos momentos mais profundos de uma solidão que me acompanha durante todo esse tempo, cada vez mais presente. Ele revive algumas vezes nos meus netos Pedro Henrique e Lucas. Também em Natália, minha alegre netinha, que tem o dom de me alegrar e com seu vigoroso abraço e seu beijo demorado e apaixonado.
Sonho em ver meu filho. Para lhe abraçar. Para pedir perdão pelas vezes em que não consegui ser um bom pai. Para lhe dizer que finalmente compreendi que tudo o que se faz pelos filhos é pouco, como sua mãe sempre me admoestava e que eu nunca escutava, egoisticamente preocupado comigo mesmo.
Imerso na saudade e no vazio fantasiei muitas vezes o nosso reencontro e muitas vezes passeamos juntos no céu. Conversamos e nos rejubilamos com as coisas de Deus e isso, talvez porque jamais questionei a vontade Dele de carregá-lo tão cedo para a eternidade. Nem mesmo quando assisti sua agonia de morte no hospital. Talvez por partilhar do pensamento de Frei Inácio Larrañaga, que uma vez escreveu: “Por que algumas pessoas se encantam com determinada música e outras ficam insensíveis? Por que aqueles indivíduos ficam extasiados diante de tal paisagem e estes outros permanecem indiferentes? Alguns dizem: dêem-me comédias, e não tragédias; não me falem de Bach, ele me dá sono, falem-me de Vivaldi. Por que estes rapazes deliram por tal cantor popular, enquanto aqueles reagem com desinteresse?”
A verdade é que depois dos sonhos me sentia humanamente culpado por me rejubilar em ter meu filho próximo de Deus. Afinal, que pai insensível seria eu em concordar, em não protestar, em não desafiar o amor de Deus, já que perdi meu filho, meu único filho, para Ele, com apenas dezenove anos de idade?
Quando Inácio Larrañaga escreveu essa frase, no livro “A Rosa e o Fogo”, ele se aprofundava na questão do silêncio que se fez carne. Tratava do Jesus Cristo silencioso que penetra no impenetrável, que dissolve o que não pode ser dissolvido, que carrega o que não pode ser carregado e consola as mentes mais irrequietas, como a minha, fazendo-as passear no céu, a compreender sem conseguir explicar, até porque não existe vocabulário que consiga relatar o tamanho e a intensidade do amor Dele por nós.
Durante esses anos assisti outros pais da minha geração ver seus filhos morrerem. Eles engrossaram comigo uma legião de pessoas que tiveram a continuidade da vida atropelada pelo chamado inexorável de Deus, pois o normal é morrermos antes dos que vieram depois de nós. Chamado, que tem como resultado não somente a morte de um filho, como muitas vezes uma completa desorganização da vida, da família, dos sentimentos. E, muitos da minha geração que já passaram por isso, não conseguem respostas claras à vontade do Pai e ficam como que perdidos, questionando as decisões de Deus e esse amor proclamado por Ele, pela boca de Isaías: “Mesmo que as montanhas oscilassem e as colinas se abalassem, jamais meu amor te abandonará e jamais meu pacto de paz vacilará, diz o Senhor que se compadeceu de ti”.
Pessoalmente, creio que somente um completo abandono e um exercício pleno de confiança na vontade Dele, acrescentarão paz aos seus desígnios, pois naqueles dias, nos momentos de maior tristeza, quando a minha humanidade pensava em ensaiar algum tipo de questionamento, recebi uma ligação, inesquecível, de um amigo, o cientista político, Antonio Roberto Ferreira. Ele, entre eufórico e afobado, disse:
- Leo, do mesmo modo de Francisco de Assis, abri a Bíblia de forma aleatória pensando em você. Caiu no livro da Sabedoria. Leia o capítulo quatro, do versículo sete até o quinze.
Antes que eu tivesse tempo de iniciar a leitura, ele recitou:
- “... quanto ao Justo, mesmo que morra antes da idade, gozará de repouso. A honra da velhice não provém de uma vida longa, e não se mede pelo número dos anos...”.
Foi como se uma luz potente tivesse sido acesa dentro do meu coração fazendo com que eu substituísse qualquer resquício de revolta por uma saudade imensa que me faz passear, vez por outra, com meu filho querido, no Céu.

*Jornalista e escritor
 DRT 0985 RN
Artigo publicado no "O Jornal de Hoje", em agosto de 2001.

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